Embora algumas pessoas acreditem que eu mantenha um intenso ritmo de leituras, não sou um leitor tão ávido quanto gostaria de ser. Luto sempre contra uma indisciplina e dificuldade de concentração que durante toda a minha vida me desafiam diariamente. E em sendo um leitor comedido, sou ainda pior “releitor”. Explico: poucas foram às vezes em que consegui reler alguma obra literária, nessas poucas vezes raríssimas foram as que eu tive prazer.
Uma dessas raras exceções é um livro que, de vez em vez, sempre que me sinto fragilizado na fé, tomado por dúvidas ou sem motivação para seguir na jornada da vida, recorro a fim de encontrar nele algum consolo, alguma inspiração que me ajude refazer minhas forças e buscar energia e saúde espiritual para continuar em frente.
Esse livro chama-se
Alma Sobrevivente, do escritor estadunidense Philip Yancey.
É um livro simples, sem muita sofisticação em sua forma ou no conteúdo. Não obstante, isso não o compromete. Trata-se especificamente de um livro sobre a fé, uma obra cristã, de um autor com um conhecimento geral vasto, e que não trilha os caminhos do academicismo teológico que, por vezes inúmeras, apresenta-se profundamente distante das inquietações cotidianas e existencialmente essenciais de pessoas que, acima de tudo, desejam desenvolver sua vida espiritual com saúde e equilíbrio.
O livro é dirigido especialmente a um público que parece aumentar a cada dia, dos decepcionados com a religião – muitos, na verdade, frustrados em relação às instituições religiosas, mas que ainda aspiram, de alguma maneira, vivenciar sua fé. Assim, Yancey organizou alguns relatos a respeito de treze pessoas que, segundo ele, contribuíram com a sua jornada espiritual; mais que isso, ajudaram-no a não cometer um “suicídio institucional”, que resultaria no abandono definitivo da igreja – enquanto instituição e organização humanas.
Como em quase todos os escritos do jornalista e editor associado da Cristianity Today, as ideias estão permeadas do precioso conceito da graça cristã. Na verdade, cada personagem mencionado é desvestido pelo autor como um misto entre êxito e fracasso diante dos ideais cristãos. Alguns são pessoas que, pela leitura de suas obras ou relatos biográficos superficiais, chamaríamos de profetas ou santos. Mas que, contudo, não passaram de seres humanos como qualquer um de nós. Seres humanos que, apesar dos pesares, manifestaram em suas obras artísticas ou sua vivência cotidiana preciosas marcas do Evangelho.
Os dados biográficos são entremeados com relatos das próprias experiências pessoais de Yancey. Assim como retoma sempre o tema da graça ou do sofrimento humano, que lhe são intimamente caros; não se furtando em reescrever acerca dos abusos e decepções que sofreu em sua vivência religiosa na infância até o início da juventude, e o quanto isso gerou nele marcas indeléveis.
Aí está a riqueza do livro, o fato de que não esconde a realidade crua e nua – e por vezes triste – que teima em existir paralela à pregação do Evangelho de Jesus. Uma realidade que, embora parte profundamente presente na vida daqueles que se dizem cristãos, contraria significativamente os altos valores da fé professada por eles.
Suas exposições pessoais, junto das narrativas biográficas daqueles a quem ele chama de mentores, são um verdadeiro alento para aqueles que já sofreram com os exageros decorrentes do convívio religioso doentio, para aqueles que já se cansaram de tentar sustentar um padrão comportamental formatado por líderes persuasivos mas sem alcançar êxito, daqueles que, estando feridos e necessitados de consolo, não encontram nas comunidades de fé o refúgio acolhedor que deveria ser a marca dos que amam a Jesus.
Suas traumáticas experiências, a maneira como as assimilou e que lhe proporcionam hoje belos frutos também motivam e ajudam o leitor a encarar com serenidade suas próprias mazelas. Para encontrar a cura pessoal, faz-se necessário encarar a desconfortável porém inevitável realidade – muitas vezes desconsiderada, quando estamos tomados pela mágoa – de que a igreja é constituída por seres falhos, pecadores em busca de redenção, mas que muitas vezes cometem falhas ao tentar ministrar a outros sua fé e que, em sua busca por servir a Deus, não poucas vezes assumem posturas diametralmente inversas àquelas anunciadas pelo seu Senhor.
Talvez esse seja o grande desafio das pessoas que se assumem feridas pelas igrejas: trabalhar (tratar, aprender a administrar) suas experiências passadas a fim de não serem destruídos pela amargura gerada por lastimáveis lembranças. Das pessoas citadas por Yancey, nenhuma delas parece ter vivido sem qualquer conflito existencial ou sem qualquer inadequação à qual tiveram que se adequar ou, pelo menos, suportar. Alguns mais exitosos em sua caminhada espiritual, outros mais desajustados. No entanto, possuidores de biografias que muito têm a contribuir conosco. Martin Luther King, Gandhi, Henri Nouwen e G. K. Chesterton são algumas das personagens abordadas pelo escritor.
Para mim, o livro não apenas se tornou uma fonte à qual recorro em dias de tempestade e incerteza, mas também possui forte significado existencial. Recordo-me ainda hoje que, há aproximadamente dez anos, procurava alguma leitura que pudesse me ajudar em meus conflitos a respeito da igreja. Na verdade, eu acabara de começar a tomar consciência de certas coisas que outrora não notara. Desde regras que não faziam o menor sentido (“não pode isso, não pode aquilo!”), que não tinham qualquer relação verdadeira com a vida cristã, à manipulação dos membros para que os líderes alcançassem seus fins pessoais, também a hipocrisia mascarada, o moralismo perverso e mesquinho (que não gerava outra coisa senão mais hipocrisia) e a manutenção de um ambiente que favorecia o empobrecimento intelectual, a inexistência de consciência cidadã e que alimentava uma visão política de gueto, sustentada pela inventiva fundamentação que asseverava: “crente vota em crente!” – sem instigar as pessoas a um espírito crítico independente, maduro, que pudesse julgar os melhores candidatos por si mesmos.
Não gostaria que alguns pensassem, após esse texto, que culpo a religião por todos os meus vícios e defeitos. Isso não seria verdade, visto que tenho aprendido a assumir minha responsabilidade pessoal diante das situações às quais me submeti, discursos que aderi e coisas que fiz. Eu seria mesquinho se não assumisse que o moralismo religioso, que contribuiu para que pulsões e neuras me acompanhassem durante anos, teve como forte aliado nesse processo minha própria mente, com um perfil psíquico sujeito a determinados transtornos.
Enfim, para além das coisas que comentei, a leitura de Alma sobrevivente fora um dos eventos que viriam a contribuir para que eu começasse a escrever. Entretanto, a despeito de ter um perfil bastante reativo, sentia que não podia nem tinha (hoje sei) maturidade para agir a respeito das tensões que vivia diante da religião, porém não conseguia me calar absolutamente; e como não havia uma tribuna na qual pudesse discursar ou questionar livremente e sem censura sobre os temas que me incomodavam de modo torturante, resolvi escrever em um blog. A internet era um lugar livre, lá poderia “soltar” minhas indagações (o que fora um alívio) de modo mais tranquilo. Não obrigava nem saía anunciando às pessoas o que pensavam, mas deixava tudo disponível na internet pra quem quer que se interessasse. Não havia ainda nem imaginado criar o blog Visão Integral, mas os primeiros escritos em outro sítio dariam origem ao espaço no qual escrevo hoje e que já está na ativa (ainda que com muitos altos e baixos) há quase sete anos.
O primeiro texto que escrevi, ainda com maior sofrimento que hoje, e bem pior do que aqueles que hoje escrevo (que ainda são custosos a sair), fora uma indicação do livro sobre o qual converso agora. Ou seja, é a segunda vez que, de forma escrita, recomendo tal obra e manifesto a importância que tem em minha vida. Há outras também muito importantes e às quais, “milagrosamente”, recorro para releituras, porém esta possui maior significado entre todas, motivou-me à prática que há muito me tem dado imenso prazer além de contribuir com meu próprio crescimento espiritual, a escrita.
Tamanho é o valor desse ato para mim que, a fim de descrever sua importância para meu bem-estar interior, teria que me prolongar ainda mais, e isso deixaria esse texto mais extenso e cansativo do que o desejado. De modo que deixo esse tema para outra conversa escrita.
Finalizando, até para que não percamos o rumo da prosa, fica então a sugestão desse precioso trabalho, pelo qual nutro imenso carinho: Alma Sobrevivente, que possui como subtítulo na publicação em português da Editora Mundo Cristão a frase “Sou cristão apesar da igreja”, mas que no original em inglês ostenta, a meu ver, maior ousadia e provocação, afirmando “Como minha fé sobreviveu à igreja”. Espero que gostem da leitura, que seja edificante. Entretanto, mais do que sugerir um livro exato, recomendo a prática da leitura como um caminho estreito que conduz a infinitas descobertas, a busca pela convivência pessoal com mentores e conselheiros reconhecidamente sábios, a comunhão com companheiros de fé, a atenção e o investimento disciplinado na jornada de crescimento espiritual.