Ouvi, vinda do Santuário, uma grande voz, dizendo aos sete anjos: Ide e derramai pela terra as sete taças da cólera de Deus. Saiu pois, o primeiro anjo e derramou a sua taça pela terra, e, aos homens portadores da marca da besta e adoradores da sua imagem, sobrevieram úlceras malignas e perniciosas (Apocalipse 16.1-2)
O título dessa reflexão remete a um filme norte americano de guerra, de 1979, de Francis Ford Copolla, com imagens fortes de destruição da natureza, a brutalidade sem propósito, a supremacia dos EUA e os efeitos que a guerra pode produzir à mente humana. Filmes como esse, bem como, momentos em que a fragilidade humana fica exposta, para as pessoas que tem formação religiosa, o termo “apocalipse” definem o sentimento que temos em relação ao nosso tempo: “O mundo está acabando!”; “É a volta de Cristo!”; tudo nos leva a pensar que a vida, como a conhecemos, está entrando em colapso. Essa sensação, para quem se acredita firme na fé, poderia trazer algum alento. Infelizmente, nem sempre é assim. Somos humanos e mesmo desejando ir para o Céu, não queremos morrer para isso.
O texto do Apocalipse de João apresenta um quadro de visões de um profeta-visionário, João de Pátmos, dos primórdios do Cristianismo Primitivo. A pesquisa acadêmica localiza a datação desta obra por volta do final do primeiro, início do segundo século da Era Comum. Os mais conservadores, acreditam que seja do ano 90 EC; outros, o localizam por volta do ano 130 EC. A obra faz parte de uma longa tradição judaico-cristã de apocalipses de visões e reflete uma reunião de imagens que precisam ser visualizadas ou imaginadas por seus interlocutores. Mais do que ler, é preciso imaginar as cenas que o texto apresenta: os monstros apocalípticos, as visões de cultos de adoração diante do trono de Deus, as pragas enviadas por Deus em três blocos (7 selos, 7 trombetas, 7 taças) que se alternam entre esses cultos e monstros.
Para pesquisadores do Apocalipse de vertente mais sociológica, a obra é uma resposta da Igreja Cristã, em forma de visão, à violência em que o seu mundo estava inserido; um mundo de perseguição. Para leitores “místicos”, o Apocalipse é a revelação do que Deus prepara para o final da história do mundo. Seja como for, os temas estão dados: num mundo violento, de pessoas que se deixaram levar pela ambição, pelo desejo do consumo desenfreado ou que veneraram a “besta”, sobrevirão os castigos e as pragas e tudo será destruído.
Como mencionado, sempre que tragédias, guerras ou pandemias ameaçam a existência humana, nos lembramos do Apocalipse. De fato, no geral, as homilias dominicais, raramente, escolhem esse texto como base. Mas nos momentos de crise, nos lembramos dele. E então, o que o Apocalipse de João tem a nos ensinar em tempos de pandemia e isolamento social?
Historicamente, sabemos que a humanidade passou pela peste negra e a gripe espanhola, duas guerras mundiais e conflitos suficientes para inspirar vários outros filmes de terror e infelizmente, aprendeu ou melhorou pouco. Para os pessimistas, essa história tende a se repetir. Para os otimistas, porém, a pandemia pode nos ajudar mais do que atrapalhar: é uma excelente oportunidade para revermos as nossas relações, valorizar o ser humano como próximo e reavaliar temas como respeito, afeto, compaixão e solidariedade.
É o fim do mundo? Acredito que não. Talvez seja o fim de uma forma de viver. Isso se relaciona diretamente com o mencionado acima, sobre a forma como tratamos nossos semelhantes, mas também, a forma como pensamos as relações de consumo, uma vez que, estamos vendo pessoas que podem correr aos mercados e comprar tudo, fazendo estoques, desafiadas a comprar apenas o necessário para que, as outras também possam comprar o que necessitam e mais do que isso, temos a possibilidade de entender que, talvez comprar tanto não seja necessário. Temos diante de nós a oportunidade de perceber que aquela troca de carro pode esperar, que talvez não precisemos dessa ou daquela roupa de grife e que, se ninguém for ao posto de gasolina e ao shopping por algum tempo, os preços tendem a cair. Mais do que isso, está diante de nós a possibilidade de compreender a diferença entre preços e valores. O que realmente importa não tem preço: o ar puro que entra em nossos pulmões, quando estamos saudáveis, não tem dinheiro que possa comprar. E por mais rico que alguém seja, ao se encontrar adoentado, a fortuna, poder ou prestígio pouco podem fazer. O ar dos pulmões que o vírus rouba, o dinheiro não compra de volta.
Outra lição que o Apocalipse de João nos ensina é sobre o cuidado com a Terra, nossa casa comum. O planeta que habitamos vem sofrendo por longos anos com a depreciação e o abuso de suas fontes naturais por parte dos seres humanos. No Gênesis, ao construir um jardim, Deus deu ao casal primordial, a responsabilidade administrativa sobre a terra; o cuidado com a preservação da vida, da flora e da fauna. Por ambição e desejo desenfreado por progresso, destruímos, matamos, caçamos e tornamos o planeta quase inabitável. Em poucos dias de ausência humana no planeta, a poluição do ar e dos rios já diminuiu e isso já pode ser percebido. O planeta passa bem, sem nós. Toda destruição e violência promovida pelo Apocalipse de João culmina com a restauração e inauguração de uma nova terra. É o retorno ao paraíso perdido de Gênesis. O nosso tempo em isolamento social, dure o tempo que for, nos permite refletir também sobre uma nova postura a ser assumida, quando voltarmos “lá para fora”. O progresso às custas da natureza, a utilização de meios de transporte que poluem a atmosfera valeriam tanto a pena, se tivéssemos em mente que não poderíamos usufruir do sol nos aquecendo ou do canto de um pássaro, nos alegrando o dia, ou de uma brisa nos refrescando no calor?
Entretanto, a maior lição que a leitura do Apocalipse pode nos ensinar é a da esperança. Toda a violência da destruição, o derramamento das pragas nos leva a pensar que, quando tudo passar, temos a oportunidade do recomeço. Aprendidas as lições, retomaremos a vida, quero crer, de forma otimista e quase romântica, com mais responsabilidade para com o mundo, valorizando os relacionamentos e entendendo que, mais do que ganhar dinheiro para comprar coisas, é importante o contato, o afeto, o olhar nos olhos, o abraço. Até lá, como diria um provérbio muçulmano: creia em Deus e amarre seu camelo. Traduzido em linguagem cristã e ocidental: tenha esperança e fé, aproveite o tempo para se dedicar a você mesmo, à sua família, mas se cuide e fique em casa.
Como esse texto foi adaptado de uma publicação em um periódico de uma igreja, vou manter informações bibliográficas e sobre o autor:
MATTOS, Carlos Eduardo de A. Doutorando e Mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós- Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo/CAPES, com ênfase em Literatura Bíblica e textos apocalípticos.
Bibliografia de referência:
BOFF, Leonardo. Virtudes para um outro mundo possível. Hospitalidade: Direito e dever de todos. Petrópolis: Vozes, 2005
NOGUEIRA, Paulo. O que é Apocalipse. São Paulo: Brasiliense, 2008. (Coleção: Primeiros Passos; 333)
TERRA, Kenner. O Apocalipse de João: caos, cosmos e o contradiscurso Apocalíptico. São Paulo: Editora Recriar, 2019.